(Prof. Ms. Antonio José Lopes Bigode, Ago-2014)
O que uma criança de 6 anos precisa aprender em Matemática?
Algumas orientações baseadas nas diretrizes do Pnaic
Por Antonio José Lopes Bigode*
O
ano de 2014 vai ficar marcado na comunidade de educadores de todo o
País como o ano de lançamento do Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa, o Pnaic, um programa federal de alfabetização
matemática. Muitos podem estar se perguntando o que alfabetização tem a
ver com matemática. Essa questão vem sendo discutida pela comunidade de
educadores matemáticos há pelo menos três décadas
e é consensual entre especialistas que a matemática seja importante
instrumento de leitura e intervenção no mundo em que vivemos. Na
sociedade atual, ler e escrever com compreensão inclui ler o mundo com
lentes matemáticas.
O
foco do Pnaic-Matemática é a aprendizagem significativa e o ensino por
meio de atividades e situações-problema, sua concepção e
desenho levou em conta o que sabemos sobre processos de aprendizagem,
metodologias e experiências didáticas. O material do Pnaic aborda vários
temas fundamentais: organização do trabalho pedagógico; quantificação,
registros e agrupamentos; construção do sistema
de numeração decimal; operações na resolução de problemas; geometria;
grandezas e medidas; educação estatística; saberes matemáticos e outros
campos do saber. Esse último tratando das relações da disciplina com a
realidade e as conexões matemáticas que é uma
tendência mundial do ensino da matemática. Seu ponto de partida é o que
as crianças de 6 anos podem e devem aprender nas séries iniciais e o
que elas já sabem e podem aprender da matéria nessa idade.
Alguém
tem dúvida de que as crianças já tiveram alguma experiência matemática
antes de entrar na escola? Certamente, já tiveram inúmeras
experiências matemáticas, quantificando ou observando as formas de suas
coisas, nas brincadeiras de que participa, nas suas rotinas, antes
mesmo que um professor ou professora as ensinasse. E que experiências
são essas e por que é importante sabê-las?
É
quase consensual entre os educadores a importância de considerar os
conhecimentos prévios das crianças e utilizá-los para que elas
organizem e aprofundem o que sabem, mesmo que de modo informal, para
adquirir novos conhecimentos. Há vários estudos que descrevem situações e
atividades em que as crianças mostram-se capazes de aprender sozinhas
ou na interação com outras crianças, sob a
orientação de um adulto, a professora, a avó ou a tia.
Crianças
são observadoras e fazem relações, de natureza lógica, mesmo quando
estão distraídas ou entretidas com suas coisas. Maria
Antònia Canals, renomada educadora de Barcelona, descreve muitas
histórias curiosas sobre crianças fazendo e descobrindo matemática. Em
uma delas, um pai e sua filha estão brincando com uma bola na sala de
casa, com a janela aberta por onde entrava a luz do
sol, de repente a criança fica parada olhando fixamente para a bola e o
pai pergunta “o que está olhando? O que tem a bola?” A menina aponta
para a bola e sua sombra e diz “olhe, papai, a bola fez um ovo”, o pai
como um educador intuitivo, não perdeu a oportunidade
de “brincar” com a filha sobre o formato de outras sombras, fazendo-a
experimentar posições de objetos da casa, cuja sombra aumentava ou
diminuía.
Em
outro episódio, duas crianças de 5 e 6 anos ganharam dois saquinhos com
animais de fazenda e cerquinhas. Cada criança ganhou um
conjunto, e chegando em casa elas juntaram todos os animais e passaram a
brincar fazendo cercados com bichos do mesmo tipo: “Um cercado para as
galinhas”, “um para as vaquinhas” e “um para os porquinhos”. Ainda havia
animais para serem cercados, mas só restavam
duas cerquinhas, que o filho mais velho entregou ao pai... “Tó, não dá
para fazer cerca”. Naquele momento, embora ele nunca tivesse aprendido o
significado de polígono, intuitivamente pensou algo muito próximo da
definição formal, como a ideia de que para
que uma figura fechada e limitada por segmentos de reta seja um
polígono, deve ter no mínimo três lados.
As
crianças aprendem coisas desse modo, observando, explorando e
enfrentando situações-problema, mesmo que essas situações não sejam
explícitas. Um estudo de viés antropológico feito pelo pesquisador
inglês Alan Bishop listou seis tipos de atividades presentes em
quaisquer culturas relacionadas às ideias e processos de natureza
matemática: contar, localizar, medir, desenhar, jogar e explicar.
As
crianças brincam e jogam em situações variadas de suas vidas, muitas
brincadeiras envolvem procedimentos de: contagem, medição,
orientação, visualização de quantidades etc. Crianças pensam
logicamente ante situações do cotidiano. Isso ocorre, por exemplo,
quando elas praticam jogos com regras ou quando organizam coisas por
atributos: coisas pessoais como roupas e brinquedos e coisas
da casa como talheres, pratos e guardanapos. Ao se apropriarem de um
modo de organização, mesmo que induzido pelos adultos, elas estão
aceitando e incorporando princípios de natureza lógica.
Crianças
também gostam de contar, muitas vezes só para dizer que sabem contar.
Porém, em muitos casos, elas apenas cantam e não contam.
Quando muito pequenas as crianças cantam uma canção que tem a seguinte
letra “um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez”, mas
isso pode ser apenas uma “cantagem” e não uma contagem. Nas primeiras
contagens as crianças estão apenas imitando
os adultos, mas em algum momento elas têm de ir além e se apropriar dos
princípios da numeração, suas relações e propriedades. E é aí que a
escola desempenha papel importante, pois para adquirir o conceito de
número além de aprender a contar, devem aprender
a seriar, fazer correspondências, classificar, nomear, simbolizar e
agrupar. Algumas dessas ações podem aparecer espontaneamente em
atividades ou brincadeiras, mas relacionar todas essas ações é algo que a
escola deve se preocupar e propiciar às crianças.
Quanto às operações, o que pais e professores devem ter atenção é em
quais situações do universo da criança faz sentido somar ou subtrair
dois números. Certamente um ensino baseado na prescrição de regras para
fazer contas, como no tempo de nossos avós, não
é adequado e com muita probabilidade, pouco interessante, desafiador e
significativo.
No
cenário da escola do século XXI, para oferecer às crianças de nosso
tempo oportunidades de aprender ideias matemáticas e desenvolverem
competências para enfrentar problemas novos e fazerem descobertas por
si, vale resgatar as ideias de Hans Freudenthal (1905-1990), criador das
bases da Educação Matemática Realística, baseada na resolução de
problemas reais, e significativos a partir de experiências
cotidianas em lugar de regras de matemática abstratas e divorciadas da
realidade vivencial ou cognitiva dos estudantes. Freudenthal sempre
advogou que a “matemática é uma atividade humana” e defendeu que a
melhor forma de aprender uma atividade é praticá-la,
por meio de atividades lúdicas e desafiadoras o que contribui para que
os alunos se interessem pela matemática propriamente dita, adquirindo
hábitos de pensar matematicamente diante de situações diversas e
extraescolares.
O
objetivo principal do ensino da matemática é desenvolver o pensamento
matemático dos estudantes, para que sejam capazes e estejam
aptos a enfrentar e resolver problemas. Porém, muitos acreditam que o
pensamento matemático é próprio de apenas alguns indivíduos especiais,
“muuuito inteligentes” ou de pessoas que sabem utilizar fórmulas
complicadas. Trata-se, é claro, de uma crença perigosa
e que pode levar a erros pedagógicos sérios. O raciocínio matemático
pode estar em situações simples, em que as crianças se sentem
encorajadas a colocar as coisas em relação.
Considere
um problema aparentemente muito simples e desprovido de qualquer
desafio: Um desenho em que 11 mãos são mostradas atrás
de uma cerca cada uma com uma quantidade de dedos levantados. Quantas
crianças você acha que estão atrás da cerca? Se você contou as mãos
levantadas e disse 11, provavelmente acertou, depende do que estava
pensando. Qualquer um poderia responder isto, bastava
contar as mãos levantadas. Qual é o desafio? Em um grupo de crianças de
7 anos, uma delas arriscou “Mas e se...?”
– E se uma criança estiver com duas mãos levantadas?
A
pergunta realça o pensamento mais flexível ou formatado da criança. A
resposta para seu novo problema é dez. Tal interpretação
levou a problematizar e formular novas questões: “Mas e se duas
crianças estiverem com as mãos levantadas ?”, “e se forem três com as
mãos para cima ?”, “Mas e se ... ?”
Eis
aí um exemplo de como é possível fazer matemática com as crianças. São
contextos como esses que contribuem para que as crianças
sejam capazes de formular questões, e concluir que o número mínimo de
crianças atrás da cerca é seis, situação extrema em que cinco crianças
estão com as duas mãos levantadas e apenas uma está com uma única mão
para o alto. É um indicador de que as crianças
são capazes de responder e argumentar mesmo sem saber regras formais,
como 5 x 2 + 1 = 11.
O
presente e o futuro da educação matemática está numa escola mais
arejada, dinâmica, problematizadora, em que as crianças são sujeitos,
individuozinhos, matematicamente pensantes. O combustível principal são
os problemas autênticos e desafiadores, nas situações contextualizadas,
realistas e significativas.
*Consultor do MEC e de SEEs, autor de livros didáticos e de metodologia e da série Matemática em Toda Parte, da TV Escola/MEC,
Unesco
Publicado na edição 60, de agosto de 2014
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